quinta-feira, 28 de julho de 2011

A determinada marcha da estupidez

A determinada marcha da estupidez.


Por Reinaldo Azevedo:

“A Serbian Film - Terror Sem Limites” seria exibido no festival RioFan. A pedido da Caixa Econômica Federal, um dos patrocinadores do evento, saiu da programação. Uma estatal decide o que pode e o que não pode ser exibido. Uma juíza proibiu a sua pré-estréia no sábado, dia 23. Ela concedeu uma liminar impedindo a exibição a pedido do DEM do Rio de Janeiro. O ex-prefeito Cesar Maia, que não viu a fita, considerou que sua exibição seria danosa para os brasileiros e violava o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A sinopse do filme é mesmo chocante — e, sem ver, sinto de longe o cheiro da picaretagem intelectual, mas nem por isso peço censura… Conta a história de um ator pornô que decide fazer um último trabalho pra ganhar uns trocos. O objetivo seria transformar pornografia em arte. Mas a coisa toda degringola e avança para um show de horrores, com cenas que simulam tortura, incesto e, no extremo do mau gosto, o estupro de um recém-nascido. O filme tem gerado barulho por onde passa. Sofreu muitos cortes na Grã-Bretanha e foi proibido na Espanha e na…, bem, na Noruega! É uma ficção! Os 76 cadáveres dos atentados terroristas são de verdade. A realidade é que é moralmente pornográfica, não? Volto ao Brasil.

Segundo o DEM do Rio, o filme faz uma “verdadeira apologia à prática de crimes contra as crianças” e promove o “fomento à pedofilia”. A juíza Katerine Jatahy Kitsos Nygaard afirma em seu despacho que “não se pode admitir que, em favor da liberdade de expressão, um pretenso manifesto político exponha de tal forma a degradação do ser humano a ponto de violar um recém-nascido”. A distribuidora Petrini Filmes recorreu, mas a desembargadora Gilda Maria Dias Carrapatoso, do Tribunal de Justiça do Rio, manteve a decisão: “Não se pode permitir que, em nome da liberdade de expressão, cenas de extrema violência física e moral, inclusive utilizando recém-natos, sejam levadas ao grande público”. Cesar Maia, paladino da moral e dos valores da família, explicou que não viu a fita, não, mas foi taxativo: “Um filme que mostra cenas de horror sexual está claramente proibido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 241. Quem proíbe é a lei em defesa da família e de seus valores.”

Cesar Maia leu “Uma modesta proposta para prevenir que, na Irlanda, as crianças dos pobres sejam um fardo para os pais ou para o país, e para as tornar benéficas para a República”, de Swift (1667-1745), e promete pedir a censura de um texto já tornado um clássico. Pô, Swift sugere ali que se comam criancinhas… Canibalismo não pode!!! Nem ironia…


É um mundo boçal, bárbaro! Quem pede a censura e quem concede a censura, meus caros, nem mesmo viram a fita! As decisões foram tomadas em base no que se ouviu falar e se leu a respeito. A Constituição Brasileira proíbe a censura nos artigos 220 e 5º, que, no inciso IX, deixa claro que inexiste censura prévia: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.” E fim de papo! A única coisa constitucional e decente a fazer é exibir o filme. Se, aí sim, houver a tal “apologia da pedofilia”, que seja então retirado de circulação. Com efeito, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, mas isso não confere a ninguém a prerrogativa de aplicar censura prévia.

Ficção
Spasojevic concedeu uma entrevista ao Portal iG. Posso estar errado, claro!, mas ele me parece só um bobalhão meio oportunista. Explicou sua obra:
“Spasojevic afirma que o filme tem caráter ‘alegórico e político’. Ele e o roteirista Aleksandar Radivojevic pretendiam ‘fazer apenas uma crítica à sociedade e às atrocidades enfrentadas pela Sérvia em sua história recente’.
‘Queríamos mostrar com honestidade sentimentos profundos sobre a nossa região e o mundo em geral. Na vida real, sentimos que nosso dia-a-dia é tratado como pornografia. O personagem do ator pornô é uma metáfora para qualquer trabalhador explorado por seus chefes ou pelos governantes do sistema - cantor, padeiro, seja o que for.’
(…)
Sobre as inúmeras cenas violentas, Spasojevic defende-se: ‘Não é um documentário e nem quero concorrer a presidente, mas precisava tratar do que sinto ao meu redor e do que vivi, especialmente nos Bálcãs, com as guerras na Iugoslávia, o bombardeio da OTAN… Não é nada inspirador para coisas bonitas.’”

Não me parece que deva ser levado a sério. E que fique claro: não vi o filme eu também. Dado o que se lê acima, não verei ainda que venha a ser liberado. Mas é inaceitável que, com base na premissa correta de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto — nenhum direito é! —, institua-se a censura prévia ao arrepio da Constituição. Um país que começa a confundir obra de ficção com crime parece estar num caminho estupidamente errado.

Encerro
Eu sou aquele que cobrou uma resposta da Igreja — que não veio! — quando a passeata gay exibiu cartazes de modelos simulando santos católicos em situações, digamos, homoeróticas. Eu sou aquele que admite — e até cobra — que grupos da sociedade reajam quando percebem seus valores ultrajados. Se ficar caracterizado que o tal filme faz mesmo a apologia da pedofilia, aí a situação muda de figura. Mas isso não está dado. O que se tem até agora é apenas a violação da Constituição. Eu sou aquele que quer uma sociedade disciplinando o estado, não um estado sufocando a sociedade.

Volto ao começo: quando tribunais trocam a letra da lei por feitiçarias retóricas, abrem-se as portas do arbítrio. Eis aí! Os que aplaudiram as outras duas violações que citei deveriam aplaudir a censura prévia também. Eu repudio as três! Questão de princípio!



Dr. Luiz Arnaldo de Oliveira Lucato
Vice-Presidente

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